Thursday, March 29, 2007

POST-LITERATURA

Antes que o entrevistador possa atacar com uma pergunta traiçoeira, Pêra antecipa-se e dispara.

Edgar Pêra: …Que tipo de filme farias tu a partir do conto?

CINE-TUGA: Mais focado na destruição da natureza, da vida dos trabalhadores…

Edgar Pêra: Não quis explorar nem ser explorado.

CINE-TUGA: Hoje ainda estás mais kríptiko…

Edgar Pêra: Não quis explorar certos sentimentos…

CINE-TUGA: Miserabilistas?

Edgar Pêra: Não quero adjectivar. Os adjectivos fazem-me comichão.

CINE-TUGA (afastando-se, é hipocondríaco): Os trabalhadores fazem então parte do cenário mental do protagonista-narrador?

Edgar Pêra: Talvez. Gostava que as dúvidas pairassem. Muitos filmes poderiam ser feitos a partir do conto do Branquinho da Fonseca. Este não pretende incluir uma narrativa como se tratasse de uma receita, com todos os ingredientes e com as mesmas medidas. Para começar as medidas nem são as mesmas!

CINE-TUGA (achando-se genial): Páginas versus minutos?

Edgar Pêra: Gostava que se pudesse ler o livro e ver o filme com graus de intensidade diferente.

CINE-TUGA (paternalista): Hoje estamos muito abstractos….

Edgar Pêra (cabisbaixo) : É verdade. Hoje tive de dar como acabada a montagem de imagem…Há uma sensação de ter ficado sem os travões e agora vou atrás do filme já não o conduzo…

CINE-TUGA: O cinema como automobilismo?

Edgar Pêra (surdo): autoclismo?

CINE-TUGA: Estou a ver qu’hoj vai ser difícil conversarmos…

Edgar Pêra: Perdão, às vezes não resisto a um som.

CINE-TUGA: Como foi feita a banda sonora?

Edgar Pêra: Para além da música tocada pelos trabalhadores das obras, pedi ao Vítor Rua que improvisasse sonoplasticamente live, em, três sessões de visionamento da pré montagem. Só com instrumentos acústicos. Mais tarde gravei uma sessão de guitarra acústica com os Dead Combo. Também com o mesmo método, tocaram ao longo do filme sem fazer pausas nem repetições. Depois recombinei, estralhacei e desacelerei muitos desses e doutros sons.

CINE-TUGA : Essa algazarra acaba por conviver bem com a voz angelical da Teresa Salgueiro…

Edgar Pêra: Foi a Teresa que escolheu o reportório. Só lhe pedi que escolhesse dentro do cancioneiro popular… Preocupei-me sobretudo que fizesse jus ao percurso da Teresa nos Madredeus, e ao mesmo tempo soasse inédito.

CINE-TUGA(céptico): Donde veio essa peregrina ideia?

Edgar Pêra: Durante a rodagem das primeiras viagens de “Visões de Madredeus” dava por mim a ouvir a Teresa cantar nos camarins ou nos corredores… Tinha acabado de ler Rio Turvo. Acabei por imaginar que a Leonor do conto afinal também cantava. Era uma forma de pôr a imaginação do espectador a funcionar.

CINE-TUGA (esgar diletante): Uma forma cinematográfica de semear o desejo?

Edgar Pêra: A meu ver a grande diferença entre o conto e o filme reside no facto de que no filme há um diálogo tímido, mas quase constante entre Leonor e o protagonista . No livro não.

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