Saturday, March 31, 2007

POST-ADAPTATIVO


Esta entrevista decorreu num clima de cordialidade inesperado.

CINE-TUGA: Como se processou a adaptação do conto?

Edgar Pêra: Depois de ler e resumir, procurei esquecer.

CINE-TUGA: Esquecer?

Edgar Pêra: Resumia uma vezes vezes com o livro à frente, doutras só de memória. Depois escrevi o guião a partir dessas notas. Só mais tarde peguei no livro. Voltei a esquecer o conto durante as rodagens. Raramente caía na tentação de o consultar. Preferi trabalhar a partir da impressão incial.

CINE-TUGA: como se as cenas a filmar fossem também platónicas. Arquétipos de cenas.

Edgar Pêra: Não iria tão longe. Mas sim, interesou-me interpretar as cenas “originais” que tinham gerado o conto.

CINE-TUGA: Mas como surgiu a voz do narrador?

Edgar Pêra: Tinha jurado amim mesmo que não caíria na tentação da voz off.

CINE-TUGA: Encaráva-la como uma bengala…

Edgar Pêra: Excato! Não me interessava “chancelar” literaria e artisticamente o filme. Nem suportar a narrativa cinematográfica com umas frases pomposas escolhidas para o efeito.

CINE-TUGA: Mas há que reconhecer o poder hipnótico de um narrador, daquele narrador…

Edgar Pêra: Apercebi-me que o mistério em vez de desaparecer adensava-se com a narração. Reli o conto mais uma porrada de vezes. Cheguei à conclusão que o texto iluminava para voltar a esconder.

CINE-TUGA: As gravações das narrações com o Nuno Melo em casa do Vítor Rua ficaram para a história do filme…

Edgar Pêra: Aí improvisávamos mais, o ambiente era (muito) mais descontraído e acabámos por escolher outras frases. Boas tiradas não servem para nada se não criarem determinado ambiente. E as descrições das personagens também de pouco servem.

CINE-TUGA (poético): Sobram moléculas sónicas… Soube que também improvisaram bastante com a personagem João Caracol (Vítor Correia).

Edgar Pêra (sorriso nostálgico).: Essas rodagens foram particularmente animadas porque o Vítor ,dando-lhe um tema ,aplica toda a sua sabedoria. Do Bairro Alto a Tavira! É uma autêntica matraca a discursar. Terraplanagem falante!

CINE-TUGA: Os diálogos de Caracol sobre a “bazzokada”, com a guitarra portuguesa do José Pracana de fundo, quase parecem rap ou hip-hop…

Edgar Pêra (em espantosa consonância): Sim. E com a tia Lurdes (Paula Só) filmámos algumas das cenas mais hilariantes…

CINE-TUGA: Quase que diria de cinema espanhol.

Edgar Pêra: Não me perturba a comparação. A própria fotografia amarelo-esverdeada do luís Branquinho contribui para que essa cena nocturna se transformasse num momento de terror luso, porque não ibérico? As referências religiosas são as mesmas neste caso….

CINE-TUGA: Facas e avé-marias foram também inventadas no momento?

Edgar Pêra: A Paula trouxe alguma da sua memória teatral para essa cena. Facilitou também já conhecer a Teresa Salgueiro (Leonor é sobrinha da Tia Lurdes) nos tempos do Bando - onde a Teresa tinha já cantado algumas destas canções. Recuamos e avançamos no tempo. Tudo se conjuga. (místico)

Friday, March 30, 2007

O Canto do Bode

POSTEODOLITO

CINE-TUGA (armadilhado) : Achas que Rio Turvo é um filme para todos os públicos?

Edgar Pêra: Não sei se isso existe. Geralmente não vejo esses filmes, logo não são para todos. Logo, não existem filmes para todos. Mas também nunca fiz um filme a pensar que estava a rejeitar algum “género” de espectador. Se um pintor não fôr figurativo não quer dizer que esteja a rejeitar o público. O cinema tem mais dificuldade em afirmar-se fora da ilustração narrativa.

CINE-TUGA: É um filme difícil?

Edgar Pêra: De fazer.

CINE-TUGA (jornalístico): Como foi a rodagem de Rio Turvo?

Edgar Pêra: Cheia de moscas, melgas e mosquitos.

CINE-TUGA: Quanto tempo durou? etc…

Edgar Pêra: Três semanas. O Luís Branquinho dirigiu uma equipa de estagiários de imagem da Universidade Lusófona. O som foi captado por finalistas da Escola de Cinema.

CINE-TUGA: Houve um conflito entre metodologias das diferentes escolas?

Edgar Pêra: Não. Antes pelo contrário, complementaram-se. Mas digamos que a minha metodologia causa sempre alguns problemas à produção. Tomo decisões em cima do momento, que alteram o mapa de trabalho.

CINE-TUGA (condescendente): Pois…

Edgar Pêra: Mas nada que se compare com outros filmes. Este teve realmente um mapa por onde nos podíamos orientar. Graças ao conto….

CINE-TUGA (professoral): Qual a função da topografia no filme?

Edgar Pêra (pragmático): Relativa. Recorremos a material quase de museu, cedido pelo departamento topográfico da Cãmara da Azambuja, e o responsável pelo departamaento acompanhou o início das rodagens de forma a que o Nuno melo soubesse manipular o teodolito e dar instruções aos apontadores.

CINE-TUGA: Teodolito? ( pensamento tuga: Isso mais parece uma canção suíça…e começa a cantarolar mentalmente “ teodoli-I-ô!…..”)

Edgar Pêra: Teodoloito, instrumento de medição mecânico-óptico. Estranho é que não dei conta de imediato que o teodolito é como se fosse uma câmara, logo o protagonista é uma espécie de homem-câmara.

CINE-TUGA: Consta que houve uma certa rivalidade entre o Nuno Melo e o teodolito (sorriso gozão).

Edgar Pêra (disfarçando uma gargalhada): O Nuno não estava interessado numa representação baseada na profissão da personagem. Em última análise, nem sequer sabemos se o protagonista do filme foi topógrafo. O seu passado é bastante mais misterioso do que no conto. E daí talvez não.

CINE-TUGA: Mais uma traição é tradição…

Edgar Pêra (ignorando-o olimpicamente): De toda a investigação para os comportamentos e diálogos topográficos sobrou apenas uma expressão curiosa: “Verticaliza!”

Thursday, March 29, 2007

POST-LITERATURA

Antes que o entrevistador possa atacar com uma pergunta traiçoeira, Pêra antecipa-se e dispara.

Edgar Pêra: …Que tipo de filme farias tu a partir do conto?

CINE-TUGA: Mais focado na destruição da natureza, da vida dos trabalhadores…

Edgar Pêra: Não quis explorar nem ser explorado.

CINE-TUGA: Hoje ainda estás mais kríptiko…

Edgar Pêra: Não quis explorar certos sentimentos…

CINE-TUGA: Miserabilistas?

Edgar Pêra: Não quero adjectivar. Os adjectivos fazem-me comichão.

CINE-TUGA (afastando-se, é hipocondríaco): Os trabalhadores fazem então parte do cenário mental do protagonista-narrador?

Edgar Pêra: Talvez. Gostava que as dúvidas pairassem. Muitos filmes poderiam ser feitos a partir do conto do Branquinho da Fonseca. Este não pretende incluir uma narrativa como se tratasse de uma receita, com todos os ingredientes e com as mesmas medidas. Para começar as medidas nem são as mesmas!

CINE-TUGA (achando-se genial): Páginas versus minutos?

Edgar Pêra: Gostava que se pudesse ler o livro e ver o filme com graus de intensidade diferente.

CINE-TUGA (paternalista): Hoje estamos muito abstractos….

Edgar Pêra (cabisbaixo) : É verdade. Hoje tive de dar como acabada a montagem de imagem…Há uma sensação de ter ficado sem os travões e agora vou atrás do filme já não o conduzo…

CINE-TUGA: O cinema como automobilismo?

Edgar Pêra (surdo): autoclismo?

CINE-TUGA: Estou a ver qu’hoj vai ser difícil conversarmos…

Edgar Pêra: Perdão, às vezes não resisto a um som.

CINE-TUGA: Como foi feita a banda sonora?

Edgar Pêra: Para além da música tocada pelos trabalhadores das obras, pedi ao Vítor Rua que improvisasse sonoplasticamente live, em, três sessões de visionamento da pré montagem. Só com instrumentos acústicos. Mais tarde gravei uma sessão de guitarra acústica com os Dead Combo. Também com o mesmo método, tocaram ao longo do filme sem fazer pausas nem repetições. Depois recombinei, estralhacei e desacelerei muitos desses e doutros sons.

CINE-TUGA : Essa algazarra acaba por conviver bem com a voz angelical da Teresa Salgueiro…

Edgar Pêra: Foi a Teresa que escolheu o reportório. Só lhe pedi que escolhesse dentro do cancioneiro popular… Preocupei-me sobretudo que fizesse jus ao percurso da Teresa nos Madredeus, e ao mesmo tempo soasse inédito.

CINE-TUGA(céptico): Donde veio essa peregrina ideia?

Edgar Pêra: Durante a rodagem das primeiras viagens de “Visões de Madredeus” dava por mim a ouvir a Teresa cantar nos camarins ou nos corredores… Tinha acabado de ler Rio Turvo. Acabei por imaginar que a Leonor do conto afinal também cantava. Era uma forma de pôr a imaginação do espectador a funcionar.

CINE-TUGA (esgar diletante): Uma forma cinematográfica de semear o desejo?

Edgar Pêra: A meu ver a grande diferença entre o conto e o filme reside no facto de que no filme há um diálogo tímido, mas quase constante entre Leonor e o protagonista . No livro não.

Wednesday, March 28, 2007

POST-CAÓTICO

CINE-TUGA: Achas que a guirarra portuguesa aparece em Rio Turvo porque fizeste antes um cine-tributo a Carlos Paredes?

Edgar Pêra: A guitarra portuguesa apareceu antes n’A Janela (Maryalva Mix), em És a nossa Fé…

CINE-TUGA: Mas não com esta carga emocional.

Edgar Pêra: Talvez..

CINE-TUGA: Como apareceu a guitarra portuguesa de José Pracana no filme? É um autêntico cromo do Fado.

Edgar Pêra: Conheci-o há três anos atrás em São Miguel, por acaso ainda estava a montar o filme do Paredes, fui a casa dele filmar ao museu privado – reconstituição tasca de fado que tem na cave, mesmo frente a um relvado de futebol. Fado e futebol…

CINE-TUGA: Mais um acaso? Mais ícones de Portugal?

Edgar Pêra : Trata-se apenas de aproveitar e canalizar.

CINE-TUGA: Vês então o cineasta como uma espécie de canalizador?

Edgar Pêra : Quando li no conto que os trabalhadores tocavam todas as noites, pareceu-me natural que banda sonora fosse acústica. E portuguesa. E popular. E ao vivo. O Ricardo Ribeiro também apareceu por acaso. Estava a jantar num tasco, e ele meteu-se comigo porque eu estava a ler o livro fado Canção de Vencidos. Estava a preparar A Fúria do Fado.

CINE-TUGA (ácido): Mais um daqueles projectos em banho-maria?

Edgar Pêra (idealista): Há que manter viva a chama. (realista) É sempre mais fácil quando os primeiros contactos são espontâneos. Com o José Ananias (o Fiscal) foi o mesmo Eu e o Nuno Melo entrámos na Cãmara da Azambuja e ele estava lá, num dos gabinetes… Só depois soube que era actor . O Pedro Hestnes (Velês) encontrei num concerto na ZDB, combinei para o dia seguinte….

CINE-TUGA: É uma metodologia para descobrir personagens secundários?

Edgar Pêra: Não há metodologia. Existem condições. Neste caso falta delas. O que favorece um trabalho feito à medida dos acontecimentos. Raramente faço castings. Como pensar em fazer filmes (quase) sem dinheiro apenas com completos estranhos? Nem num partido…

Tuesday, March 27, 2007

POST DIRECTORIAL

CINE-TUGA: O director das obras do aeroporto (José Wallenstein) tem uma fixação bizarra no bode Platão. Rio turvo é um filme de sexualidades desviantes?

Edgar Pêra: É um filme à antiga. Nem pinga de sangue, nem de sexo.

CINE-TUGA: Mas promete-se.

Edgar Pêra: Muito.

CINE-TUGA: Um país de promessas pede um filme de desejos e frustrações?

Edgar Pêra: Não faço ideia. Mas não tive qualquer intenção de exibir graficamente esses desejos. Mostrar sim, as angústias de não ver uma promessa cumprida.

CINE-TUGA: Quase parece um statement político: promessas não cumpridas…

Edgar Pêra: Mas não estou a falar de eleiçoes! Rio Turvo é um filme sem qualquer tipo de pretensão moralizante.

CINE-TUGA (sardónico): Independente e desalinhado como o Branquinho da Fonseca?

Edgar Pêra (estóico): Quando se fala do “maior aeroporto da Europa” só se pode estar a falar de um país pequeno. Branquinho da Fonseca ia directo aos assuntos sem doutrinar.

CINE-TUGA: Mas todo filme parece girar em torno de coisas invisíveis. As obras, os amores… É um filme sobre a invisbilidade? (petulante)

Edgar Pêra (esfíngico) : Quase. Mas trabalhar sem contrato já era uma realidade nos anos quarenta. E também era sobre isso que ele escrevia. O que não quer dizer de forma alguma que o Branquinho Fonseca fosse um neo-realista. Nem neo-surrealista.

Saturday, March 24, 2007

POST SERENO

CINE-TUGA: “Arrependido?”, o segundo filme aqui publicado, tem qualquer coisa de expiatório…Rio Turvo é um filme habitado pela culpa?

Edgar Pêra: poderia contestar uma frase tão banal, mas há que dizê-lo com frontalidade: Sim.

CINE-TUGA - Podes desenvolver?

Edgar Pêra (inesperadamente jovial). Rio Turvo lida com medos e fantasmas contemporâneos. A páginas tantas Branquinho da Fonseca escreveu…(pega num caderno e lê) “Por coisas que não valem a pena, tenho arriscado a vida, por outras que deviam impor-me decisões heróicas, tenho ficado indiferente. Como não sou cobarde, nem fraco de vontade, não sei explicar isto com a clareza conveniente. São questões que atormentam a consciência de qualquer pessoa. “

CINE-TUGA: Que tenha consciência. ..

Edgar Pêra: Rio Turvo é um retrato dessa indiferença trespassante. Há uma cena capital no filme que recorre a parte desse texto do Branquinho, em que o protagonista tem de decidir se é homem ou macaco, se é cíníco ou é cobarde, de que matéria é feito afinal…
É preciso “ distinguir as coisas pelas quais vale a pena erguer o braço e aquelas que tanto faz que sim ou tanto faz que não.”

CINE-TUGA - Mas a cena a que te referes é substancialmente diferente no conto…

Edgar Pêra - (deixa cair o cadernito) Espero bem que sim!

CINE-TUGA: …Esperas?

Edgar Pêra: As mesmas questões colocadas de forma diferente. Tormentas e desesperanças condensadas. Uma “lassidão dormente” que se instalou…

CINE-TUGA:: O cinema enquanto despertador?

Edgar Pêra– Indutor.

CINE-TUGA: Este último filmezito também recorre ao habitual clichê da fechadura. Rio Turvo é um filme de clichês?

Edgar Pêra (procurando refrear-se): Tem alguns. Estava na altura de lidar com a besta.

CINE-TUGA: Vês então o cinema como uma espécie de toureio.

Edgar Pêra: O cinema emocional obriga a uma certa coragem para enfrentar lugares comuns. Mas nunca estive parado, nem à espera que fizessem o meu caminho.

CINE-TUGA (aos pulos em cima da cadeira) - Quer dizer que resolveste enfrentar a tua propria cobardia?

Edgar Pêra (sereno) - Quer dizer que “como não sou cobarde, nem fraco de vontade, não sei explicar isto com a clareza conveniente.”

Arrependido?

Friday, March 23, 2007

POST-FX

CINE-TUGA: Pelo que tenho visto durante as minhas cine-inspecções, nas últimas duas semanas tens andado a sobrepôr planos, uns atrás dos outros.

Edgar Pêra (escandalizado): Que exagero!! Para já não se trata de sobrepôr mas de encadear. Lentamente, de forma a que hajam sobreposições momentâneas.

CINE-TUGA: Não resististe mais uma vez aos efeitos.

Edgar Pêra: Não convivo bem com essa palavra. A não ser que seja aplicada por oposição à palavra defeito. Vemos a realidade por defeito, de forma grosseira. Por vezes uma sobreposição facilita a entrada noutra dimensão da mesma realidade. Quer seja para entramos dentro da tola do protagonista quer seja para outra coisa qualquer...Uma sobreposição pode induzir outro estado de espírito.

CINE-TUGA(rastejante): Um estado alterado? Não tens medo de estar a abusar dessas sensações?

Edgar Pêra: Talvez. É sempre arriscado tomar este tipo de decisões muito perto da fase final.

CINE-TUGA (falso ingénuo): Porque é que decidiste à última da hora?

Edgar Pêra: Porque até há bem pouco tempo não valia a pena. Ainda não estva satisfeito com a estrutura do filme. E também porque estava a ler sobre “Las Hurdes “do Búnuel e mencionavam o encadeado como factor de estranheza (envergonhado)…

CINE-TUGA: Parece que estás a corar ó Pêra! Para quem se diz anti-cinéfilo…

Edgar Pêra: Foi um momento de fraqueza (sorri aliviado). Ou daí talvez não. Regressei ao cinema muito recentemente. Estou a elaborar um projecto de tese e tenho lido mais sobre cinema…

CINE-TUGA(sarcástico) : Um vírus académico? Rio Turvo já em si é uma síntese do que aprendeste e antítese do que já fizeste.

Edgar Pêra: Não me interesso assim tanto por cinema. Por exemplo, esta conversa sobre encadeados já começa a enjoar. Mas também não vou falar sobre o aeroporto da OTA, o Rio Turvo não é sobre isso.

CINE-TUGA (arreliado): então é sobre quê?

Edgar Pêra: É talvez sobre a ota que há dentro de nós. (risada). Peço perdão, não devia ter bebido café.

CINE-TUGA(vingativo): Parece-me que tens de terminar a montagem de imagem este domingo. Como é que te sentes?

Edgar Pêra: Livre.

Thursday, March 22, 2007

POST-NATURAL

CINE-TUGA: Os cenários do filme são uma mais valias do filme.
Edgar Pêra: Isso seria se encarrasse o filme como um produto. O que é para ti mais-valia?
CINE-TUGA: Um bónus especial, sem ter de pagar mais.
Edgar Pêra (a dar para o arrogante): A beleza dos cenários é uma perigosa armadilha. Fica-se refém da sua beleza. Foi talvez por isso que filmei as paisagens como se fossem rostos e os rostos como se fossem paisagens.
CINE-TUGA(abanando o leque): Isso soa-me a cliché
Edgar Pêra: Também a mim. O que quero dizer com isso é que procurei um certo grau de abstração durante a rodagem daqueles cenários de forma a que pertencessem a um todo.
CINE-TUGA(infantiloide): Intermutáveis como no Lego?
Edgar Pêra: Básico. O que é curioso é que toda a história se passa a pouco mais de 50 kms daqui e por vezes perguntam-me se foi filmado em África ou no Brasil. Até já evocaram o Vietname (sorriso apokaliptiko).
CINE-TUGA: Como foram construído os cenários?
Edgar Pêra: Ao sabor do vento. Como tínhamos meios escassíssimos o Miguel Figueiredo tive de inventar do nada. Chegámos ao limite extremo de às duas da manhã decidrmos alterar por completo o cenário do dia seguinte. Aquela cantina foi concebida e construída em menos de três horas.
CINE-TUGA: Isso não é uma desculpa?
Edgar Pêra: Desculpa? Desculpa, não percebi.
CINE-TUGA: Uma desculpa para o filme.
Edgar Pêra: A cantina também era dada como provisória no conto!
CINE-TUGA: Mas se todo filme foi feito a esse ritmo…
Edgar Pêra: É mais um sinal de desafio. E eu e as pessoas (amigos) que trabalham comigo gostamos de desafios. Fazer no momento. Perfeito para um páis eternamente provisório.
CINE-TUGA: Estás a citar o Branquinho da Fonseca?
Edgar Pêra: Quase.

POST-PHILM

CINE-TUGA: O cine-post que ontem estreaste aqui no blogturvo é uma cena do filme?

Edgar Pêra: Sim. Não. A imagem e o som pertencem ao filme, mas não é uma cena do Rio Turvo.

CINE:...?

Edgar Pêra: O som pertence a uma cena a imagem pertence a outra (cyber~montagem do clip: Francisco Kastor Som: Mário Dias) E para além disso, é a frase” a voz vinha de longe” é a primeira do conto. Que por sua vez se refere a uma outra voz.

CINE-TUGA (aparvalhado): ...?

Edgar Pêra: Não quis recorrer literalmente ao texto do Branquinho da Fonseca. Assim, sempre que pude, utilizei as palavras do conto como trampolim.

CINE-TUGA (ainda mais aparvalhado, tinha dormido pouco na noite anterior): Trampolim?

Edgar Pêra: Certas cenas fantásticas que são referidas no filme não foram filmadas, umas por falta de meios, outras por falta de cine-interesse, e outras ainda porque foram eliminadas da versão final. Em compensação muita da narração do conto foi transferida para sonhos e pesadelos do protagonista sem nome. Durante um ano ainda pensei que não iria recorrer à fatídica voz off, mas depois apercebi-me da riqueza de certas frases que poderiam hipnotizar o espectador. “A voz vinha de longe” foi uma delas. E em vez da voz pertencer a um marinheiro, atribui a sua origem a uma sereia. Acho que foi uma troca justa.

CINE-TUGA(despertando): Preocupa-te muito a justiça…?

Edgar Pêra: Preocupa-me mais a injustiça. Seleccionei algumas das frases do conto que se adequassem à personagem e à voz do Nuno Melo. E ele também - naturalmente - recusava algumas das frases que soavam demasiado pomposas para o filme. Na montagem final eliminei todas as descrições das personagens, à excepção da do Planeta (JP Simões), porque era a que mais nos punha a imaginar.

CINE-TUGA(desconfiado): Sobrou então o quê?

Edgar Pêra (impaciente): O que está no filme. Sempre que senti que a narração servia de muleta para as imagens, foi parar ao caixote. Lixo. Interessaram-me sobretudo as frases que aumentavam o enigma e adensavam o mistério dos protagonistas.

Wednesday, March 21, 2007

A VoZ...

ALPHA-POST

CINE-TUGA: Como é que descobriste Rio Turvo, o livro?
Edgar Pêra: Num alfarrabista. 50 cêntimos.
CINE-TUGA: Já conhecias Branquinho da Fonseca?
Edgar Pêra: Só O Barão. Há dez anos atrás quando rodava A Janela (Maryalva Mix) , o director de fotografia do filme, Luís Branquinho, revelou-me que o seu avô era o escritor Branquinho da Fonseca. Especulámos sobre a possibilidade de um dia vir a fazer um filme a partir de um dos seus contos.
CINE-TUGA: Algum em especial?
Edgar Pêra: Obviamente O Barão, a sua obra mais conhecida, foi a primeira hipótese abordada. Mas nunca mais falámos no assunto, outros filmes soterraram o projecto.(poético).
CINE-TUGA(expectante): …
Até que há três anos atrás encontrei o livro (da colecção RTP), num alfarrabista da Rua da Trindade. A capa suja condizia com o título - que de imediato me transportou para um universo de film noir e de western, e para os filmes série b, de Jaques Tourneur, Fritz Lang…
CINE-TUGA: Mas Rio Turvo não tem nada a ver com isso.
Edgar Pêra: Talvez. Mas tem a curta duração daqueles filmes série B, que antecediam os filmes série A, os chamados filmes “a sério”. E foi rodado em três semanas. E com um budget mínimo. E tem um pântano…
CINE-TUGA: Estás-te a adiantar. Já não estás a ser linear.
Edgar Pêra: Li de um fôlego o conto e rendi-me de imediato à caracterização das personagens. Totalmente imprevisível! Ora se aproximando do neo-realismo, com personagens maltratadas pelo destino, ora entrando por um universo onírico. E aquele final abrupto inesperado-trágico e irónico-amargo…
CINE-TUGA: Um final português?! Achas que foi a primeira vez que conscientemente abordaste um cliché português?
Edgar Pêra: Não tenho a certeza. Mas continuando….
Foi só alguns dias mais tarde que se deu o clic. Resumi em poucas frases o enredo de Rio Turvo ao Tiago Antunes, o montador dos meus últimos filmes.
Ao reparar na forma clara e sucinta como tinha resumido a história do filme ao Tiago apercebi-me que me estava a libertar de um problema recorrente: a repulsa que tenho a anedotas e outro tipo de historietas cinematográficas.
CINE-TUGA: Uma iluminação portanto…(irónico-amargo)
Tive aí a certeza que estava frente a matéria bruta cine-ficcional! A facilidade com que lhe resumi a história, sem qualquer espécie de pudor, fez-me pensar logo ali …
CINE-TUGA: Aonde? (interceptando)
Edgar Pêra: (incomodado) Naquela estação de comboio de Entrecampos A caminho da Escola de Cinema para dar uma aula de Dramaturgia.
CINE-TUGA: Também és professor.
Edgar Pêra: Não. Mas talvez por estar a caminho da Escola senti que poderia finalmente regressar a uma certa ideia de cinema, mais voltada para uma narrativa emocional do que para uma plástica sensorial. Mais pão pão queijo queijo. E outros ingredientes.
CINE-TUGA: Parece que aproximas o cinema da culinária…
Edgar Pêra: (ignorando-o): Ainda em transe com a leitura e releitura(s) do conto-novela dei por mim a resumir várias vezes em diferentes cadernos a história de Rio Turvo, e logo de seguida comecei a adaptar e a transcrever para linguagem cinematográfica.
CINE-TUGA: “Mas um homem parado não serve para nada.”
Edgar Pêra: Pois. Quando fui apresentar o Stadium (Fantas Mix) em Fevereiro de 2005 jantei de seguida com o produtor do filme, o João Pinto Sousa.
CINE-TUGA: O produtor de Movimentos Perpétuos, com quem tinhas tido uma experiência quase inédita em que o produtor avança com o dinheiro antes de ter garantido o total financiamento do filme. Os apoios foram obtidos, a distribuição garantida com mais de ano de antecedência…(propagandístiko)
Edgar Pêra: E lancei-lhe um repto: filmar Rio Turvo com um naipe de actores-músicos. Um risco calculado, mas ousado, para o qual teríamos de nos acautelar recorrendo a todo o tipo de trunfos.
CINE-TUGA: parece que aproximas o cinema dos jogos de azar.
Edgar Pêra (ignorando-o bis): No meu caso esses trunfos são amizades e cumplicidades.

Tuesday, March 20, 2007

SINOPSE SOCRÁTICA

CINE-TUGA: como resumirias Rio Turvo, o filme?
Edgar Pêra: O que entendes por resumo?
CINE-TUGA: Um sumário?…
Edgar Pêra: É um raio de um problema sumariar um filme.
CINE-TUGA(insistente): Mas a história como é?
Edgar Pêra (insidioso): É um raio de um problema. Como resumirias tu?
CINE-TUGA: Fácil. Um Topógrafo (Nuno Melo) chega à margem de um rio onde os homens destroem a paisagem onde se irá erguer “o maior aeroporto da Europa”. Naquele mundo de homens sem ilusões vive Leonor (Teresa Salgueiro), a “Flôr-do-Pântano”, a protegida do socrático Director (José Wallenstein) que, com Platão, o seu bode de estimação, dirige as invisíveis obras.
Edgar Pêra (exasperado): Isso é apenas o pano de fundo onde o filme se projecta.
CINE-TUGA: Mas podes dizer-nos sobre o que se trata?
Edgar Pêra: Trata de um certo desprendimento da realidade.
CINE-TUGA: De que realidade?
Edgar Pêra: Tanto o conto de Branquinho da Fonseca como o filme tratam de um certo desprendimento da realidade, que todos conhecemos em maior ou menor grau.
CINE-TUGA: Então podia ser em qualquer altura…
Edgar Pêra: Exacto! E em qualquer lugar, ou pelo menos num certo tipo de lugares.
CINE-TUGA: Isso também te permitiu outra liberdade ao adaptar o conto?
Edgar Pêra: Sim, nos anos 40 já se falava na construção do “maior aeroporto da europa.” Não foi preciso actualizar a narrativa do Branquinho.
CINE-TUGA: É um filme romântico e bizarro? (desconfiado)
Edgar Pêra: Diz-me tu.
CINE-TUGA (muito assertivo): Pois!
Edgar Pêra: Também é musical. São os trabalhadores que fornecem a mão de obra sonora: as guitarradas dos Dead Combo e de José Pracana, os fados de Ricardo Ribeiro e do Manuel João Vieira e a bossa nova do JP Simões. E a voz da Teresa, claro. Como definirias então o filme?
CINE-TUGA: Uma cine-badalada neo-platónica!
Edgar Pêra: Isso é um slogan.

Monday, March 19, 2007

POST-ACTUAL

CINE-TUGA: Estamos a pouco mais de um mês da antestreia do filme. Em que fase se encontra então Rio Turvo, o filme?

Edgar Pêra: Hoje?

CINE-TUGA: Sim.

Edgar Pêra: Estamos na última semana de montagem de imagem. Hoje cheguei à ZDB e quando liguei o computador a montagem do fim-de-semana tinha desaparecido. Há que desenvolver um certo espírito zen quando se trata de problemas com computadores. Respirar fundo e depois vasculhar a máquina em busca de alternativas. Lá consegui recuperar os ficheiros e comecei a fazer as alterações que tinha planeado no dia anterior. Eram nove da manhã quando consegui trabalhar. Ao meio-dia tinha chegado ao fim do filme. Ao meio dia e 15 o computador krashou e todo o trabalho foi-se e não voltou. Foi assim a minha cyber-manhã.

CINE-TUGA: Mas conseguiste recuperar o trabalho?

Edgar Pêra: Praticamente. É sempre de esperar que este tipo de problemas aumente exponencialmente à medida que o filme se aproxima do seu “fim”.

Sunday, March 18, 2007

POST-PRODUÇAO


POST – PRODUÇÃO

CINE-TUGA: Como foi feito o filme?

Edgar Pêra: À mão. Com o investimento de todos o que participaram. Com o dinheiro que o produtor arriscou. Sem qualquer tipo de subsídios. Os actores foram pagos simbolicamente. Apenas tivemos apoio da Universidade Lusófona e das Câmaras da Azambuja e do Cartaxo. E dos Bombeiros.

CINE-TUGA: Nota-se um certo ressentimento da tua parte…

Edgar Pêra: Nã…mas isto também não é maneira de se fazer cinema profissional. Se não houver outra maneira também não posso ficar parado. E não me canso de citar uma frase do conto de Branquinho da Fonseca : “Um homem parado não serve para nada.”

CINE-TUGA: Em que fase se encontra o filme? Vai ser mais um daqueles casos típicos em que acabas o filme umas horas antes de o exibir? (olhar de soslaio)

Edgar Pêra: É altamente improvável, dado que se trata de um filme rodado em HD (Halta Definição) e depois de finalizado torna-se mais complexa a remontagem. No entanto… (sorriso matreiro)

CINE-TUGA: Não tens medo de não conseguir ter o filme pronto a tempo?

Edgar Pêra: Não (assertivo). Mas um filme não depende apenas do seu autor. Ainda estamos à procura de apoios para podermos fazer a post-produção em condições. Nada que nos faça desistir.

CINE-TUGA: Depois dos 3 prémios de Movimentos Perpétuos no IndieLisboa do ano passado haverá lugar para surpresas com o Rio Turvo?

Edgar Pêra: É um filme radicalmente diferente de outros que fiz.

CINE-TUGA: Que tipo de filme é então Rio Turvo?

Edgar Pêra: Tipo Rio. Uma cine-badalada…

CINE-TUGA: ?

Edgar Pêra: As canções são interpretadas pelas personagens, tocadas ao vivo nos cenários do filme.

CINE-TUGA: Daí a escolha de Teresa Salgueiro para o papel de Leonor?

Edgar Pêra: Nunca teria convidado a Teresa se não soubesse que ela iria desempenhar bem a todos os níveis. É uma revelação para quem não conhece as suas capacidades interpretativas. A personagem foi enriquecida e transformou-se no ponto centrifugador das frustrações dos trabalhadores do aeroporto virtual que se constrói ao longo do filme.

CINE-TUGA: Escolheste o tema por ser actual? Andas à boleia dos temas quentes?

Edgar Pêra: Antes fosse. Já em 2002 apresentei um projecto de longa-metragem sobre futebol para ser apresentado no Euro2004, mas só me “deixam” fazer documentários. Mas não acredito em filmes feitos à boleia. E o conto foi escrito nos anos quarenta, o que atesta a intemporalidade de um tema como “o maior aeroporto da Europa” Poderia ser sobre o maior centro comercial da Europa. Somos especialistas em King Size.

CINE-TUGA: É esse então o tema do filme?

Edgar Pêra: Nem pensar. Isso é um dos temas de fundo do filme.

CINE-TUGA: Qual é o tema então?

Edgar Pêra: Já viste o filme. Conta-me tu.

Saturday, March 17, 2007

POST BRANQUINHO



- CINE-TUGA: Rio Turvo é um filme muito diferente dos outros. Não achas que estás a atraiçoar os teus espectadores?
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- Edgar Pêra: Não acredito que os “meus” espectadores só gostem de um tipo de filmes e também não espero fazer sempre o mesmo tipo de filmes. Dito isto, este filme parece-me ser a evolução natural. Não tem o barroquisno esquizóide da Janela (Maryalva Mix) nem o espontaneismo futurista do Manual de Evasão LX94 e de SWK4, mas também se improvisou muito, sobretudo ao nível dos actores secundários, como é o caso do Vítor Correia e da Paula Só…E o Nuno Melo acompanhou o filme desde a sua concepção. Fez comigo a localização dos cenários e esteve sempre presente na feitura do filme. E quem viu por exemplo o meu telefilme 88 sabe que há um outro caminho a percorrer. Muitos, aliás.
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- CINE-TUGA: E guião desta vez houve? (sorriso cínico)
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- Edgar Pêra: Já disse e repito: o guião é uma chave de ignição. Não devemos viajar agarrados a ela, não é o volante do filme. Aquilo que me guia são impulsos, vontade de filmar e montar o que ainda não imaginei, viajar por um caminho ainda não percorrido, inclusive por mim. Neste caso tinha a liberdade de ter algo contra o qual lutar. Com a estrutura do filme definida pelo conto, tinha umas grilhetas das quais me podia libertar sem no entanto perder de vista o ambiente e a história que me inspirou.
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- CINE-TUGA: Os admiradores do Branquinho da Fonseca podem então ficar descansados?
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- Edgar Pêra: Onde estão esses admiradores? (amuado) Espero sobretudo que o seu número aumente, a curiosidade desperte, a sua obra seja reeditada, etc., etc. Porque se trata de um autor não alinhado que também foi posto à parte. Quando concorri ao Icam em 2005 estava à espera que o projecto tivesse mais hipóteses porque se tratava do centenário do seu nascimento. Mas, que eu saiba, nem houve um dia dedicado ao Branquinho da Fonseca na Feira do Livro...

Thursday, March 15, 2007

POST-PLATÓNICO

CINE-TUGA entrevista Edgar Pêra
Parte zero

Ciine-Tuga: No conto de Branquinho da Fonseca, o bode chama-se Sócrates. Porque é que mudaste o nome para Platão ?

Edgar Pêra- O que o me interessou no conto do Branquinho da Fonseca foi a possibilidade de imaginar aquela história em qualquer época. Para evitar que houvesse qualquer tipo de confusão com os tempos de hoje, o bode passou a chamar-se Platão.
E Platão sempre tem um ditongo, é uma palavra tipicamente portuguesa. E Portugal é um país quase platónico.

Ciine-Tuga: Mas o destino de Sócrates e Platão é bem diferente. Não te parece que estás a deturpar o sentido original do conto, ou pelo menos de uma parte altamente simbólica do conto?

Edgar Pêra - Acho que saber como morreu uma figura mítica não é importante para um filme. Sabemos que Platão existiu. Quanto a Sócrates ainda não sabemos. (risos) Mas a figura do bode é capital para o filme. Houve outras cenas com o bode que até foram acrescentadas, nem sequer figuravam no conto. Por outro lado, como os diálogos no livro são escassos, recorri frequentemente aos Diálogos Sobre a Justiça de Platão. Pode dizer-se também que é um filme quasi-platónico. Assim como o aeroporto que se pretende construir. Quer no filme quer no conto.

RIO TURVO

É oficial. Rio Turvo no IndieLisboa 2007. Produção Cine-Tuga.